Pio XII foi
eleito papa no mesmo ano em que a segunda guerra mundial estourou: 1939. Até
hoje não se chegou a uma conclusão sobre a postura do religioso durante o
Holocausto. Afinal, a Igreja foi omissa? Uma reação firme teria evitado ou
aumentado o número de inocentes mortos?
A reconciliação
entre a Igreja e os judeus avançou mais nos últimos 40 anos do que em toda a
História do cristianismo. Mas resta um grande obstáculo a superar: a campanha
pela beatificação de Eugenio Maria Giuseppe Giovani Pacelli, o papa Pio XII
(1876-1958). Iniciada em 1965, a causa estava suspensa pelo Vaticano até
outubro último, quando, durante a missa do aniversário de 50 anos da morte de
seu antecesseor, Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, argumentou pela retomada
do caso. O problema é que líderes de organizações judaicas e famílias de
sobreviventes do Holocausto acusam o sumo pontífice de omissão ante as atrocidades nazistas na Segunda
Guerra Mundial, iniciada em setembro de 1939, Já o Vaticano assegura que Pio
XII, que assumiu o papado há 70 anos, em março de 1939, atuou em silêncio para
evitar o pior.
Essa
controvérsia causaria surpresa para muitos judeus que viveram durante o
conflito. Albert Einstein (1879-1955), um refugiado do nazismo, e a primeira –
ministra israelense Golda Meir (1898-1978), por exemplo, expressaram
publicamente sua gratidão ao Santo Padre por salvar judeus do genocídio.
A polêmica só
ganhou força em 1963, com a peça de teatro O Vigário, do protestante alemão Rolf Hochhuth, hoje com 77 anos.
Nela, Pacelli era retratado como um sujeito calculista e sem moral, que ignorou
o sofrimento dos judeus em nome de interesses próprios. É uma obra de ficção,
embora ancorada em ampla pesquisa do autor. Até que ponto ela teria algo de
verdade?
Essa é a
pergunta que ainda hoje instiga os historiadores. Nos últimos anos, mais de dez
livros foram lançados, com diferentes interpretações sobre a conduta do pontífice antes e durante
o regime nazista. Em geral, eles podem ser divididos entre os pró e os contra
Pio XII. Uns o acusam de ser cúmplice do
Holocausto, enquanto outros garantem que ele atuou nos bastidores para salvar
quantas pessoas pode. Mas, antes de conhecer os argumentos dos dois lados, é
preciso entender a situação do Vaticano nos anos anteriores ä Segunda Guerra.
IGREJA AMEAÇADA
O poder dos
papas vinha naufragando desde a Revolução Francesa, em 1789. Na época, a razão
começava a reinar sobre a fé, e os Estados modernos estavam dispostos a separar
a religião da política. Durante o século 19, as propriedades da Igreja foram
saqueadas e seus territórios viviam sob constante ameaça. Em 1809, o imperador
francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) chegou a sitiar o Vaticano e prender Pio
VII (1742-1823). Na tentativa de diminuir o poder do catolicismo na França, ele
manteve o pontífice confinado durante mais de quatro anos.
Napoleão foi
derrotado em 1815, mas o processo de unificação da Itália botou as terras da
Igreja novamente em risco. Em 1860, o rei piemontês Vitório Emanuel II (1820-1878)
já controlava quase todos os domínios papais do centro da Itália. Nessa época,
surgiram duas correntes dentro da Santa Sé. Uma delas insistia no poder papal
absolutista: a outra queria repartir esse poder com Igreja nacionais
independentes de Roma. A primeira alternativa levou a melhor no Concílio
Vaticano I. A Igreja proclama, em texto de 1870, o dogma do papa incontestável
e infalível. Os líderes nacionalistas logo deram o troco. Na Alemanha, na
Bélgica e na Suíça, ordens religiosas foram expulsas pelos governos locais e o
ensino ficou nas mãos do Estado. Na Itália, manifestantes protestaram durante o
cortejo fúnebre de Pio IX (1792-1878) e só não jogaram o caixão no rio Tibre
porque os seguranças agiram rápido e salvaram o cadáver do papa.
DIPLOMATA CENTRALIZADOR
Diante da
crise, os novos líderes da Igreja tinham agora um duplo desafio: defender a
integridade da instituição e recuperar o poder político entre os donos da
Europa. Para isso, a Santa Sé investiu pesado na formação de diplomatas – entre
eles Eugênio Pacelli, um romano nascido em 1876 numa família de juristas a
serviço do Vaticano. Ele ajudou a reformular a legislação católica a fim de
conceder aos pontífices uma autoridade indiscutível. Em 1917, essas leis foram
compiladas no Código de Direito Canônico.
PARTIDOS FECHADOS
O outro trunfo
de Pacelli era um doutorado sobre as concordatas, nome dado aos tratados que a
Santa Sé usava (e continua usando) para regular suas relações com os Estados –
por exemplo, para garantir o direito da Igreja de controlar escolas religiosas
ou celebrar casamentos. Em novembro último, O Brasil assinou um acordo desse
tipo como Vaticano, que gerou críticas de entidades contrárias ao ensino
religioso em escolas públicas e a outros privilégios de caráter não –laico.
Durante
décadas, o conteúdo desses tratados (em geral assinados pelo papa com os
soberanos, por cardeais – secretários de Estado com embaixadores autorizados)
tinha variado de acordo com o país. “Com o código de 1917, porém a concordata
virou um instrumento que impunha condições a bispos, padres e fiéis, sem
consultas e em qualquer lugar do mundo”, diz o jornalista britânico John
Cornwell, autor de O papa de Hitler – A
História Secreta de Pio XII.
Foi uma dessas
concordatas que o papa Pio XI (1857-1939) assinou em 1929, com o ditador
italiano Benito Mussolini (1883-1945); o Tratado de Latrão. Elaborado pelo
irmão mais velho de Pacelli, Francesco, o documento reconhecia o Vaticano como
Estado soberano e o catolicismo como a única religião na Itália. Em troca, fechava
o Partido Popular Católico. Porque? Simples: o Vaticano queria os fiéis fora da
política para não prejudicar sua hierarquia e influência.
Muito antes de
se tornar líder máximo dos católicos. Pacelli estava convencido de que a Igreja
só permaneceria unida no mundo moderno
com o fortalecimento da autoridade dos papas. Na década de 20, quando era
embaixador do Vaticano na Baviera, ele tinha assinado esses acordos com a
Rússia, a Letônia e a Polônia. Em 1933, já secretário de Estado do Vaticano,
ele via no Tratado de Latrão o modelo perfeito para seu maior objetivo: uma
concordata com a Alemanha, onde viviam cerca de 23 milhões de católicos.
O único
problema era o chanceler Adolf Hitler (1889-1945) “Pacelli e Hitler nutriam um
desprezo mútuo. Cada um se sentia ameaçado pelo potencial do outro de exercer o
poder mundialmente”, escreve o jornalista americano Dan Kurzman no livro Conspiracão contra o Vaticano. “Apesar
da desconfiança, os dois viram vantagens – pelo menos temporárias – em frear o
conflito com a assinatura de uma concordata em 1933.” O acordo tornou todos os
alemães sujeitos às leis canônicas e acabou com o Partido do Centro Católico, a
única agremiação democrática que ainda restava no país.
Até aqui, não
há grandes dúvidas a respeito do religioso. Os historiadores começam a se
dividir a partir do momento em que o cardeal se tornou papa, em 1939. Afinal,
ele foi omisso ou discreto durante o Holocausto?
CONTRA PIO XII
Para Cornwell,
o italiano não foi apenas omisso; ele ajudou o Fuhrer: “Como disse Hitler, numa
reunião ministerial de 14 de julho de 1933, a garantia de não – intervenção de
Pacelli deixava o regime livre para resolver a questão judaica”. Isso não
significa que Pacelli simpatizasse com Partido Nazista. Ao contrário: não apoiava
sua plataforma racista e via nele uma ameaça à religião. “Mas o temor o nazismo
era ofuscado por um medo ainda maior de Pacelli, o comunismo”, diz o
historiador Michael Phayer, da Universidade de Marquette, nos Estados Unidos.
Foi com essa mesma lógica antimarxista que a Igreja apoiou ditadores como
Benito Mussolini, na Itália, e Francisco Franco (1892-1975), na Espanha. Valia
tudo para conter o “perigo vermelho”. Até mesmo fazer um pacto como diabo.

Mas o ponto é:
Pio XII ficou mesmo em silêncio durante o Holocausto? Nem tanto. O papa falou,
sim, mas poucas vezes e de forma ambígua. Nos discursos de Natal que fez em
1941 e 1942, por exemplo, condenou a violência, sem mencionar “nazistas” nem
“judeus”. No discurso de 1942, o mais importante, quando as atividades dos
campos de concentração estavam no auge, ele afirmou: “A humanidade deve esse
voto às centenas de milhares de pessoas que, sem qualquer culpa pessoal, às
vezes apenas por motivo de nacionalidade ou raça, estão marcadas para a morte
ou extinção gradativa” . Foi o ponto máximo de seu protesto diante das
atrocidades de um regime que, ao fim da guerra, teria matado cerca de 6 milhões
de judeus.
A historiadora
Susan Zucotti, da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, não tem dúvida:
se Pio XII tivesse sido mais incisivo, teria ajudado a salvar muitas vítimas.
No livro Under His Very Windows: The
Vatican and the Holocaust in Italy (“Sob suas próprias janelas: O Vaticano
e o Holocausto na Itália”, sem edição no Brasil), ela lembra que os croatas
fascistas eram muito devotos e, por isso, suscetíveis a acatar pedidos feitos
pelo papa. “Como as autoridades da Igreja deixaram os católicos em ambiguidade
moral ao não falar, a grande maioria deles se manteve como espectadora”, afirma
o historiador Michael Phayer em seu livro The
Catholic Church and the Holocaust (“A Igreja Católica e o Holocausto”, sem
edição disponível no Brasil).
É certo que
muitos católicos arriscaram a vida para esconder os judeus em suas casas,
igrejas e escolas. No entanto, para Zucoti e Phayer, eles prestaram essa ajuda
apesar do papa, e não por causa do que ele disse ou fez. “Pio XII fez
relativamente pouco pelos judeus, quando eles necessitavam, e os católicos
fizeram muito mais”, diz Phayer. Os críticos do sumo pontífice também
questionam porque ele nunca excomungou Hitler, Henrich Himmler (1900-1945) e
outros chefes nazistas, que eram católicos batizados. Essas simples ação,
argumentam, teria tido um importante efeito sobre os fiéis – algo de que os
defensores de Pio XII duvidam.
Mas espinhoso
que acusar o papa de omisso é considerá-lo antissemita. Ë o que faz o
jornalista e escritor John Cornwell, que cita uma carta escrita por Pacelli na
época em que ele era embaixador do Vaticano em Munique.
Ao relatar seu
espanto com uma manifestação de bolcheviques na cidade, ele se referiu ao líder
do grupo, Marx Levien (1885-1937), como “russo e judeu; pálido, sujo, olhos de
drogado, vulgar, repulsivo”. Na carta, ele também diz que a namorada de Levien
“era judia” e que integrava “um bando de mulheres de aparência duvidosa,
judias, como todos ali”. Pode ser coincidência, mas essa referência ao fato de
serem judeus, em meio a descrições de repulsa física, é um velho clichê
antissemita.
O historiador
americano Daniel J. Goldhagen, autor do livro
Uma Dívida Moral, vai além. Ele acusa a Igreja Católica de ser maior
responsável pelo racismo que desembocou no Holocausto.
Para Goldhagen,
a Igreja abrigou durante milênios o antissemitismo como parte integral de sua
doutrina.
A FAVOR DE PIO XII
O principal
argumento em defesa do papa é simples: se ele tivesse se posicionado com mais
vigor, haveria retaliação. E alguns dos especialistas que dizem isso são
judeus. “Uma condenação pública mais forte teria provocado represálias nazistas
contra o clero católico na Alemanha e nos países ocupados. Também colocaria em
risco a vida de milhares de judeus escondidos da Itália, além dos católicos que
os protegiam”, diz o rabino e historiador americano David Dalin, autor do Livro
The Myth of Hitler´s Pope (“O mito do
papa de Hitler”, sem tradução). De acordo com o rabino, Pio XII pediu às
igrejas italianas que abrigassem judeus quando as tropas alemãs ocuparam Roma,
em 1943, e assim evitou que milhares deles fossem deportados a Auschwitz. “Na
cidade, 155 conventos e mosteiros abrigaram cerca de 5 mil judeus durante a
ocupação alemã. E outros 3 mil se refugiaram em Castel Gandolfo, a residência
de verão do papa”, afirma. Dalin rejeita a ideia de que Pio XII era
antissemita; pelo contrário, ele o indicou ao título de “Justo entre as
Nações”, utilizado em Israel para descrever não – judeus que arriscaram suas
vidas durante o Holocausto para salvar vidas. Afinal, Pio XII tinha motivos
para temer por sua própria vida: Hitler planejava invadir o Vaticano e sequestrá-lo.
Outro defensor
de Pio XII é o historiador e diplomata israelense Pinchas Lapide, ex – cônsul
de Israel em Milão. Em sua obra Theree
Popes and the Fews (“Três papas e os judeus”, sem versão no Brasil), Lapide
conclui que o líder religioso ”foi instrumento para salvar pelo menos 700 mil
judeus, e provavelmente 860 mil, da morte certa na mão dos nazistas”. Uma cifra
exagerada, segundo os críticos. Seja como for, Lapide justifica a tese de
“maior protesto, maior retaliação” citando o exemplo da Holanda, país onde os
bispos católicos mais resistiram ás perseguições nazistas.
Em cada igreja,
eles leram uma carta denunciando o “tratamento sem misericórdia aos judeus”. O
resultado? “Enquanto os bispos protestavam, mais judeus, cerca de 110 mil, ou
79% do total, eram deportados aos campos de extermínio”, diz o historiador.
Os partidários
do papa também argumentam que seu silêncio é uma falácia. Garantem que seus
discursos de Natal foram entendidos como uma clara denúncia do extermínio
judeu. E citam como prova os editoriais que o jornal americano The New York Times (hoje crítico do
pontífice) escreveu na época. “A voz de Pio XII é a única no silêncio e na
escuridão envolvendo a Europa neste Natal”, afirmava um texto, em edição de
1941. A homilia de 1942 teria deixado os nazistas furiosos, afirma o
historiador irlandês Eamon Duffy, autor de
Santos e Pecadores – História dos Papas. “A Alemanha considerou que o papa
tinha abandonado qualquer pretensão de neutralidade”, diz.
Tem mais. Para
o escritor americano Kenneth D. Whitehead, é ingênuo pensar que maior protesto
de Pio XII levaria os católicos a se opor aos nazistas, como se os fiéis
seguissem automaticamente suas recomendações – o que não ocorre nem com a
proibição à camisinha. “O fato é que a maioria dos católicos alemães,
especialmente no início, viu Hitler o salvador de seu pais, em meio á crise
pela derrota na Primeira Guerra. Os nazistas chegaram ao poder de forma totalmente legal. Só depois
impuseram um regime totalitário”, diz Whitehead no artigo The Pope Pius XII Controversy (“A controvérsia do papa Pio XII”,
inédito em português).
Em meio ao
debate, o papa Bento XVI decidiu congelar novamente a campanha de beatificação
de Pio XII e aguardar até que seja feita uma pesquisa mais conclusiva e
esclarecedora sobre sua história. Enquanto isso, o sucesso do polêmico para,
João XXIII (1881-1963), já foi beatificado e a campanha por João Paulo II
(1920-2005) corre a passos largos.
LÍDER INFALÍVEL
A abertura de
arquivos do Vaticano sobre os anos do Holocausto seria o primeiro passo nesse
estudo aprofundado sobre as ações de Pio XII durante a guerra, embora muitos
considerem que mesmo isso não vá adiantar nada. “ Se existisse um documento
mostrando claramente o envolvimento de Pio XII em favor dos judeus, o Vaticano
já o teria mostrado. E se algum outro revelasse que ele foi colaborador dos
nazistas, com certeza, já teria sido removido”, diz o jornalista Anshel
Pfeffer, do diário israelense Haaretz.
Segundo ele, a
polêmica em torno da beatificação de Pacelli vai além do debate sobre os fatos
históricos e da disputa entre o Vaticano e as organizações judaicas. Ela também
reflete uma disputa interna católica que vem desde o século 19: a briga entre
os que defendem o poder papal infalível e os que rejeitam. “As atitudes de Pio
na guerra não são o principal argumento
dentro do Vaticano para torna-lo santo. Os que o defendem preservam sua imagem
de último líder católico conservador do século. Sua adoração é central para o s
que creem na versão mais extrema da infalibilidade papal”, diz Pfeffer.
No fim das
contas, quem sabe o papa seja bem menos do que falam sobre ele – para o bem ou
para o mal. Talvez seu grande problema tenha sido a obrigação de exercer, ao
mesmo tempo, o papel de líder político e de chefe religioso numa época difícil,
tendo que conjugar seu dever moral com os interesses de um Estado. Talvez ele
tenha sido apenas uma pessoa ambígua, num período ainda mais ambíguo.
Ou quem sabe, o
embaixador do Vaticano que virou Vigário de cristo jogou comas regras da
diplomacia, enquanto esperava com paciência pelo fim da guerra. A mesmoa paciência
que, hoje, as pessoas precisam ter para saber quem realmente foi Eugenio
Pacelli.
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História? Pois bem na Editora abril tem essa matéria e muito mais, clique
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FONTE: REVISTAS AVENTURAS NA HISTÓRIA EDITORA ABRIL - Matéria feita por Eduardo Szklarz - Página 30 edição 67/2009.